terça-feira, 19 de outubro de 2010

Os rios sem nome

Os rios sem nome
Autor: Manuel Seabra
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"Os rios sem nome, livro publicado no inicio dos anos 80, tem Hilário como personagem principal, um jovem que acompanha as diferentes e bruscas mudanças dos regimes em Portugal: fim da monarquia, implantação e supressão da república, implantação do regime ditatorial... participando activamente nas lutas sociais. Acaba por ser preso e deportado para uma das colónias portuguesas. Enquanto preso, vai contar de forma impressionante, a vida cruel e horrível que ele e os restantes presos políticos levavam."

Pouco mais se encontra na net sobre esta obra. Sobre o autor encontramos uma entrada na wikipedia (AQUI) e nem a capa consegui encontrar. Tenho que confessar que fiquei admirada e depois até comecei a duvidar se não teria sido eu que tinha reagido exageradamente ao livro. Conclui que não, que é mesmo falta de publicitação. Acontece o mesmo com tantos outros autores e obras que esta é apenas mais uma esquecida no tempo.

Com algum conteúdo politico que poderão desmotivar alguns leitores relativamente ao livro, está contudo muito bem escrito e não aborrece em nenhum momento o leitor com explicações excessivas. Mostra-nos a realidade de sindicalistas convictos, na clandestinidade, que põe as suas crenças à frente da família e da própria vida para salvar, do modo que eles acreditam, o país, as classes operarias e os desfavorecidos.
Pode parecer demasiado utópico ou com personagens não verosímeis, mas bem pelo contrário. Hilário, a personagem que acompanhamos durante o livro, não põe em causa as suas crenças, mas lamenta várias das suas opções não consegue esquecer a tristeza que sente em nunca ter tido uma vida decente de casado, de nunca ter conhecido o filho, ou de nunca se ter sentado à mesa da sua casa - pois nem isso ele sente que tem - para comer um jantar cozinhado pela mulher.
Sofre todos os dias terríveis castigos, assim como trabalhos demasiado pesados. Vive o dia a dia numa miséria constante, onde o objectivo do director do Tarrafal - Campo de Morte Lenta, é vergar os prisioneiros ao regime. A união dos companheiros, comunistas, anarquistas ou outros, é a única coisa que os consegue manter vivos.




Deixo aqui um pequeno texto de um dos prisioneiros que deu um testemunho real sobre os 16 anos que passou no Tarrafal (em tudo muito semelhante ao descrito no livro).

abril 23, 2004 no A Verdade da Mentira
Tarrafal – Campo de Morte Lenta

Palavras de João Faria Borda (já falecido), um homem que passou dezasseis anos e três meses no Campo de Concentração que foi uma das mais sinistras criações do regime a que a Revolução de 25 de Abril pôs termo.

«O campo de concentração era um rectângulo (cerca de 250m por 180) situado num dos sítios mais insalubres do arquipélago de Cabo Verde. Como alojamento existiam umas barracas de lona onde eram metidos cerca de 12 presos em cada uma.
As casas de banho não existiam. Havia apenas uns sanitários – toscos muros de tijolo com uns buracos no chão e umas latas de gasolina para as necessidades.
Como cozinha existia um telheiro com uns muros por onde a poeira entrava aos montes. Dois indígenas faziam a comida. A alimentação era péssima – havia ocasiões em que era necessário pôr bolas de algodão no nariz pois o cheiro da comida impedia que ela entrasse no estômago.
Não havia água potável. Só existia água num poço a cerca de oitocentos metros do campo, água salobra que os presos transportavam em latas de gasolina. Mesmo assim era má e em pequena quantidade, não chegando para a higiene. Tomava-se banho com um único litro de água despejada de uma lata onde eram feitos uns buracos para o efeito.»

«O primeiro director do Tarrafal foi Manuel Martins dos Reis, capitão gatuno e paranóico, vindo da Fortaleza de Angra do Heroísmo. Este director “entretinha-se” a roubar as coisas que os familiares dos presos, com sacrifício, mandavam, desculpando-se que tudo aquilo era enviado pelo Socorro da Marinha Internacional. Chegou mesmo a montar uma pseudo cantina onde vendia as coisas roubadas.
Mal desembarcámos começámos imediatamente a trabalhar. Transportávamos pedras, sob vigilância constante dos guardas.
Em Cabo Verde, região de clima variável, calhou chover bastante nesses anos. A lona das barracas apodreceu de tal maneira que lá dentro chovia como na rua e de manhã acordávamos com a cara negra da poeira que se pegava à humidade que sobre nós caía.
As águas acumuladas formavam pântanos onde se desenvolviam mosquitos transmissores do paludismo. A saúde de todos nós, presos, arruinava-se.
Caíamos atacados da doença chamada biliose. Sem fornecimento de medicamentos e com um médico que era um patife da pior espécie, em poucos dias morreram sete camaradas. Em cerca de uma média de 200 presos era vulgar, em certas alturas, apenas dez andarem a pé.»

«Os escândalos da actuação do primeiro director levaram à demissão deste. Foi substituído por João da Silva, acompanhado pelo fascista Seixas.
Estávamos em 1938/39. A guerra civil espanhola terminava com a vitória do fascismo. O ditador português Salazar tinha contribuído, apoiando com o envio de géneros alimentícios e de homens, os quais ficaram conhecidos pelos Viriatos. Hitler tinha subido ao poder em 1933. Na Itália existia Mussolini. A situação no campo do Tarrafal, reflexo da situação política internacional caracterizada pela ascensão do fascismo, agrava-se terrivelmente.
João da Silva dizia frequentemente: “Quem está aqui é para morrer!”
Com este director começou a funcionar sistematicamente a célebre tortura conhecida por “frigideira”. Todos os dias eram para lá atirados presos e eu também por lá passei algumas vezes.»

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